Por que os mapas de fantasia são todos iguais? Como escapar de Clichéa, onde os sonhos da originalidade e identidade vão para morrer
Atualmente, estamos trabalhando no mapa de nosso próprio cenário, que deve ser lançado em alguns meses. Saímos para comprar folhas de papel A2 e começamos a rabiscar. Uma ilha, montanhas, mares, florestas, vulcões e desertos. O resultado foi a fabulosa terra de Clichéa, onde os sonhos da originalidade e identidade vão para morrer. Se tratava de uma Terra Média bagunçada com toques de Azeroth e Costa da Espada, exatamente igual a mil outros mapas que você já viu em jogos online e RPGs de mesa.
![](https://static.wixstatic.com/media/a8dd48_b19fefaa2f5c40d08338a4bf369ed8c4~mv2.png/v1/fill/w_48,h_29,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,blur_2,enc_avif,quality_auto/a8dd48_b19fefaa2f5c40d08338a4bf369ed8c4~mv2.png)
Não percebemos que tínhamos produzido um estereótipo da fantasia até este domingo, no evento Diversão Offline (DOFF), onde, de longe, avistamos nosso mapa exposto na prateleira dedicada ao RPG Pathfinder, no stand da editora New Order. Não era exatamente o nosso mapa, mas as semelhanças eram impressionantes. Um continente em forma de C invertido, com um mar mediterrâneo carregado de ilhas, frio nos pólos e inacessível pelas margens, com o interior bravio e cidades espalhadas na costa. Como pode? Nunca havíamos visto aquele mapa e acreditávamos estar produzindo uma geografia a partir de nossa própria imaginação. Quais eram as chances? Bom, pensando em retrospecto, as chances de coincidência eram bem altas. Clichéa, mais do que um lugar, é um “não-lugar”, composto com o objetivo de ser conveniente para o narrador, composto pelas referências históricas e literárias do cartógrafo amador e composto por alguma aleatoriedade. Nossas referências e as referências dos autores de Pathfinder são as mesmas, nosso apreço pela conveniência é igual, e qualquer característica única pode existir apenas por um capricho da aleatoriedade. Quando vimos o mapa de Pathfinder, primeiro ficamos abalados pelo nosso esforço perdido, mas confesso que, por debaixo do espanto, senti alívio. Desde o princípio, eu tinha uma ideia meio maluca de produzir um mapa totalmente esquisito (ainda não posso contar exatamente como ele será diferente) e apenas não insisti nisso porque queremos que nosso cenário seja inovador em diversos aspectos e inovar também no mapa parecia exigir um esforço que poderia fazer falta em outras coisas. Então, me senti aliviado porque percebi que um mapa que trabalha para o roteiro é fundamental para um mundo de fantasia, tanto quanto as classes, raças, sociedades e demais elementos com que vínhamos quebrando a cabeça. O mapa de Pathfinder poderia facilmente ter passado batido por nós, e minha ideia maluca nunca teria ressurgido das cinzas. Mas, agora que o acaso nos favoreceu e temos trabalhado no mapa esquisito, sentimos que estamos no caminho certo, porque cada elemento parece único, carregado de um sabor que ressoa o restante de nosso cenário. Como não criar um mapa Conveniência: Em nosso cenário, o mapa será invadido. Quer os jogadores interpretem os colonizadores ou os nativos, é conveniente para nós, game designers, saber onde a ação vai acontecer. Caso possamos prever o local da invasão, podemos carregar o lugar de pontos de interesse. Essa intenção gera barreiras geográficas como cordilheiras de montanhas e gelo e vulcões e tempestades incessantes que bloqueiam as regiões sem interesse. Gera também a impressão de diversidade de biomas que existem na terra, o que dá ao cartógrafo do fantástico a sensação de que ele está produzindo um mapa verossímil. Assim, o mestre convence os jogadores e a si mesmo de que aquele mapa é um mundo aberto; mas na realidade trata-se de um corredor onde todos percorrem um caminho óbvio. Além disso, no mundo real, as forças que produzem barreiras não têm propósito. A sensação de teleologia na geografia acaba com o interesse narrativo. Em outras palavras, quando algo existe com uma finalidade, ele não serve para mais nada: o deserto é vazio, seu objetivo é ser tão desinteressante que ninguém vai querer se aventurar por lá. Referências: Como melhor aproveitar as referências literárias e históricas no RPG? Este é um assunto que merece um texto próprio. Por enquanto quero apenas refletir sobre o fato de que o velho, o ordinário e o desgastado podem ser disfarçados de “pesquisa histórica” e “comentário sobre a obra dos grandes”. Parte da indústria dos jogos subsiste de requentar o que já funcionou e persuadir desenvolvedores de que a falta de imaginação é alegoria, de que o plágio é intertexto. Por exemplo: a Europa tem o Mar Mediterrâneo, que serviu como via expressa para mercadores e viajantes em uma época quando o deslocamento por terra era lento. O seu mapa realmente precisa de um mar central? Você realmente não consegue imaginar outra forma de agilizar as viagens de seus jogadores? Tolkien colocou um ermo que confina personagens na Terra Média. Você também acha indispensável ter badlands onde plantas não crescem? Você consegue ser mais original… Como fazer um mapa original que trabalha para a trama O nome do gênero é jogo de fantasia, o que significa que ele deve ser irrealista e a geografia não deve ser aleatória como a da Terra. Como construir um mapa que trabalhe para o roteiro e que não seja óbvio? O segredo é pensar em termos de função. Se o propósito da sua cordilheira de montanhas é ser uma barreira, não pense em uma montanha ou literal muralha gigante (George R. R. Martin chegou na sua frente), pense em todas as outras coisas que podem funcionar como barreira e desenvolva seu mundo a partir daí. Um rio de lava pode ser uma barreira; por que ele não esfria? Que criaturas sobrevivem nesse ecossistema? Uma zona de exclusão pode ser uma barreira; quem paga os guardas, armadilhas e cães vigias e o que estão protegendo? Se o propósito do seu mar central é facilitar a viagem, inove. Por que não um canal ou ducto construído com tecnologia pré-moderna fazendo o papel dos trens? Ou talvez uma zona de distorção do tempo; isso é relativamente pouco explorado na fantasia medieval. Tudo depende do tipo de narrativa que você quer criar. A trama, a estética, o estilo, o ritmo, a identidade original – esses devem ser seus guias; jamais a conveniência e a repetição.