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Como criar um mundo original e instigante? - Dose de XP #11

Updated: Mar 26, 2023

Esqueça as coisas de que você gosta, ou vai acabar com uma salada de referências. Comece pelo lado oposto: defina problemas, os resolva e se atenha à sua visão autoral

A criação de cenários já foi brevemente abordada nos Dose de XP sobre adaptação e sobre mapas, mas, como estou atualmente trabalhando na criação de dois mundos para o Metajogo, gostaria de tirar alguns pensamentos da cabeça.


Um mundo de que você goste


O primeiro universo com que tenho me ocupado é Musânia, um módulo no sistema D20 inspirado na chegada dos europeus ao novo mundo. Este é mais “fácil” por ser orientado por processos históricos reais – a resistência dos povos originais; o deslumbramento com a descoberta do estrangeiro; a fome, miséria e pragas do antigo continente. Todas essas ideias nos limitam, mas também nos servem como guias.


O obstáculo concreto vem com a definição de um problema a ser superado. Ao invés de ser uma deficiência que coloca o game designer em desvantagem, uma limitação pode servir como foco para o cumprimento de metas. Neste exemplo, nosso primeiro desafio era reimaginar a história da colonização das américas com base no que sabemos sobre o comportamento das pessoas submetidas àquele tipo de situação.


Além disso, nossa ambição era criar um cenário empolgante e divertido. Da mesma forma que Tolkien reimaginou a Europa medieval em O Senhor dos Anéis; e não como a semana do folclore brasileiro na escola básica. Assim, tivemos parâmetros para procurar o historicamente plausível e o empolgante, e rejeitar tudo que parecesse didático.


Por isso, se preciso dar um primeiro conselho para quem quer criar seu próprio mundo, essa dica é: comece definindo limites. Não busque o que você gosta, porque você provavelmente gosta de muitas coisas e perseguir todas elas resultará em fantasias juvenis de robôs lutando contra minotauros no estilo Kung Fury. Pense no RPG mais próximo do que você gostaria de fazer, e busque seus pontos de discordância, para que você seja capaz de definir um limite que te impeça de cometer os mesmos erros.


Um mundo original


O segundo universo em que tenho trabalhado é o indescritível “Veins of the Earth”. Vou evitar spoilers – começarei a mestrar Veins of the Earth na próxima terça (dia 23) às 20h na MetajogoTV. Em 18 anos de RPG, eu nunca vi nada parecido. Esta é, de longe, a coisa mais original e instigante já publicada sobre um mundo enterrado nas profundezas. Sim, é melhor do que Júlio Verne em Viagem ao Centro da Terra e nem se trata de literatura. Vá e veja em nossa Twitch ou assista a gravação no YouTube. Mas calma, isso não é um jabá para minha campanha de terça; eu quero chegar a algum lugar com isso.


Veins of the Earth me tem feito pensar sobre o que faz um cenário ser original. Onde está a inovação? Não está na mecânica: percorrer corredores escuros é coisa velha no RPG. Não está nos monstros, que em Veins são uma mistura maluca de Lovecraft com cartoons satíricos dos anos 90, porque inimigos criativos existem em outros cenários também. Definitivamente não está nos personagens, que são tão descartáveis que mal existem. Não está nas sociedades das culturas criadas, não está na história imaginada, não está na forma da narrativa.


Esse cenário me empolga tanto porque sua inventividade está na visão original do autor sobre a obra. O britânico Patrick Stuart criou nada menos do que doze tipos de escuridão para suas cavernas. Me entenda bem: a abundância de detalhes geralmente torna a produção muito chata. Mas, em Veins, o sistema muda com o tipo de escuridão, transformando a narrativa e a prática do jogo. Esse tipo de visão inovadora eleva a escuridão à personagem principal.


Tomei a liberdade de traduzir alguns parágrafos do capítulo sobre a iluminação (o livro ainda não tem versão em portugês). Aqui, Patrick Stuart escreve para o mestre, que, mais do que interpretar monstros e NPCs, deve encarnar a escuridão. Veja isto:


“Nunca presuma a visão. Suponha escuro. Uma maneira simples de fazer isso é imaginar a escuridão como um ser vivo. Em vez de ser uma simples ausência negra, considere-a como uma espécie de líquido ativo. As sombras não desaparecem humildemente ao acender uma vela. Elas recuam, mas continuam seguindo os jogadores como um predador à espreita.


A escuridão os cerca. Ela enfia suas garras delgadas por detrás de colunas sombreadas, se esticando em direção à lanterna, ansiando por apagá-la. Ela recua relutantemente diante da luz, segue cuidadosa e implacavelmente, rastejando o mais perto que pode. Deixa marcas de mastigação nos cantos da sua visão.

As regras são difíceis de lembrar e os detalhes são fáceis de esquecer sob estresse. A intenção não é. A intenção é fácil de lembrar e, ao contrário dos detalhes, ela se torna mais poderosa sob estresse. Você se lembra de quem te odeia. Quanto mais estressado você estiver, mais você se lembrará disso. O escuro odeia os jogadores; você joga no escuro. Você provavelmente esquecerá que uma vela tem um raio de três metros, mas nunca parará de esperar que a vela se apague.”


Bom, eu acho que é aí onde mora a inovação. O autor reinventou a interação mais antiga do RPG: a pergunta do jogador ao mestre “o que eu estou vendo?”.


Ótimo, Veins of the Earth é original, mas como o autor fez isso? Eu não sei exatamente, mas imagino que Patrick Stuart não tenha tido uma visão em que concebeu todo seu universo subterrâneo pronto. Ele provavelmente gostava do aspecto da exploração de calabouços – antiquíssimo no D&D – mas achava suas mecânicas mal utilizadas ou inverossímeis e resolveu fazer melhor.


Daí, talvez ele tenha passado a outro problema que decorre da relação com o escuro: como iluminar seu caminho? Com lanternas e combustível. Como carregar combustível se você precisa se espreitar entre as rochas? Se espreitando entre as rochas você pode viajar em três dimensões, diferente da superfície onde as viagens acontecem em apenas duas dimensões. Como mapear viagens em três dimensões? Quão longas serão essas viagens? Elas serão Infinitas. Os jogadores vão mergulhar em um oceano negro. Sem nunca chegar a lugar algum. Toda a esperança perdida. Ponto, essa ideia está parecendo mais original do que a mera exploração de calabouços, embora ainda seja essencialmente isso.


Novamente, o conselho que me ocorre é: puxe a ponta solta. Contanto que o primeiro problema de interesse seja abordado de forma original (isto é, com uma visão estilística autoral) e contanto que você se mantenha coerente a esse estilo na solução dos problemas que vão seguir, você logo vai conseguir enxergar seu mundo se formando.


Ao final desses dois processos, você termina com dois guias – um explica o que, e outro explica como. O primeiro processo consiste em definir elementos que te desagradam em outros cenários, e esse processo produzirá um mapa com os obstáculos a serem superados. O segundo consiste em buscar uma forma original de solucionar esses obstáculos, e isso te permite encontrar uma lógica que pode ser aplicada para imaginar o restante do mundo que você quer criar. Em um universo onde aquele problema é resolvido de forma tão inusitada, como são resolvidas essas outras questões? Como seu mundo te parece? Explique tudo aos poucos, você tem tempo.

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