Se as perguntas forem difíceis demais, às vezes é necessário deixar o acaso te dar as soluções.
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Se você já ouviu os podcasts do Metajogo, pode ter nos escutado resmungando contra encontros aleatórios, tabelas de eventos acidentais, geradores de mapas. Tivemos bons motivos para criticar essas coisas. A desaprovação foi feita no contexto da análise de campanhas, e as tabelas de sorteio reduzem a coerência da história narrada. Se jogadores precisam encontrar informações sobre a trama, é melhor que as dicas e pistas estejam cuidadosamente plantadas, ao invés de a cargo do acaso.
Acontece que tabelas de sorteio de eventos têm seu lugar. Elas poderiam ser convenientes em uma aventura com trama menos rígida em que o mestre tem espaço para improvisação. Tabelas permitem a combinação de diferentes elementos, de forma que o narrador pode ser surpreendido e incorporar o imprevisto para tornar seu mundo mais rico. Por exemplo: jogadores estão na floresta e encontram um (sorteio) gênio (sorteio) atormentado por uma maldição lançada por um (sorteio) kobold do mal. Pronto, uma pequena trama improvável nasceu.
Mas, o sorteio de eventos imprevistos pode mais do que uma utilidade conveniente. Ele pode produzir uma dinâmica que se torna o coração do seu jogo. Enquanto a trama principal tende a ser enfraquecida, esse sistema de geração de aventuras tem suas vantagens. Junto com os jogadores, o mestre é surpreendido e fica ainda mais envolvido com o jogo, pois precisa estar sempre atento e pronto para explicar o inusitado, ao invés de simplesmente transmitir fatos aos jogadores como quem narra um filme.
Historicamente, essa dinâmica sempre esteve presente no RPG jogado há algumas décadas. Mais sobre isso no episódio sobre Old School Renaissance (OSR) com Gabriel Marzinotto. Conheça o catálogo dele, com itens originais de RPGs clássicos, “Artigos para exploração de masmorras, tumbas e outros lugares escuros” (Instagram) (e-mail) (Cupom de Desconto para o Catálogo: OSRMETAJOGO). Mas o uso desses artifícios fortuitos diminuiu com as recentes edições do D&D, que focam a história ao invés da exploração.
Com o movimento de valorização do RPG antigo, o interesse pelas tabelas geradoras de encontros e mapas retornou. Atualmente, estou mestrando nas terças-feiras às 20h em nosso canal da Twitch o cenário Veins of the Earth, cujo sistema é um retro-clone do D&D antigo, e fui forçado a usar as tabelas aleatórias. O resultado foi muito surpreendente.
Em Veins, não apenas os encontros são às vezes sorteados, mas também o formato dos mapas. As sessões se passam no subterrâneo e é incrivelmente difícil produzir galerias de cavernas criativas e verossímeis confiando apenas em sua imaginação. Isso acontece porque estamos habituados a pensar em mapas de apenas duas dimensões, mas, ao contrário do que acontece na superfície, as galerias, grutas e túneis abaixo da terra correm em todas as três dimensões.
Além disso, se você não for um geólogo, provavelmente conhece poucos tipos de rocha. Veins of the Earth traz cem tipos de cavernas originais – cavernas na carcaça de bestas gigantes; túneis formados por monstros escavadores de terra; grutas originadas pelo soterramento de árvores gigantes, que há muito foram decompostas e deixaram a impressão em negativo de seus troncos ligados por galhos e raízes. Multiplique isso pelos doze tipos de escuridão que podem ser sorteados.
O autor do livro (o já exaustivamente elogiado Patrick Stuart) compreendeu que, sem o aleatório, mesmo os mestres com vocação para a narrativa original começam a se repetir após algumas sessões de Veins of the Earth. Novamente, isso acontece porque vivemos na superfície e nossa imaginação raramente vasculha as leis da vida abaixo da terra. O problema do game designer era inserir em seu produto a rejogabilidade, e ensinar mestres a serem surpreendentes nesse ambiente tão alheio para todos nós, e a solução encontrada foram as tabelas aleatórias com soluções previamente testadas.
Neste sistema, até as perícias incorporam tabelas aleatórias. Geralmente, pensamos em escaladas contra paredões ou muros, mas cavernas são fechadas por todos os lados e os jogadores precisam às vezes escalar o teto ou declives invertidos. Em um jogo onde a escalada é tão presente, seria muito chato se todos os fracassos significassem uma simples queda, e aqui você pode sortear dezenas de resultados criativos para cada fracasso. A luz acabou e o jogador ficou perdido no escuro das entranhas da terra? Sorteie os efeitos. O jogador precisa nadar em uma gruta cheia de água sem saber até onde ela se estende? Sorteie.
O efeito final é um jogo com uma dinâmica muito diferente da produção de histórias coletivas a que estamos acostumados. A experiência dá uma lição de humildade a qualquer mestre que esteja convencido demais dos poderes da própria criatividade. Mesmo o melhor mestre será incapaz de criar muitas aventuras originais se a imaginação dele for limitada. Coloque alguns obstáculos ao seu próprio trabalho e veja as suas insuficiências aparecerem.
Por isso, a dica do dia para os mestres é: se as dificuldades forem grandes, sorteie soluções. Ao invés de gastar energia vasculhando o arsenal de clichês que todos temos na cabeça em busca de uma saída que pode ou não funcionar, você consegue usar melhor a sua inteligência para justificar a resposta aleatória que já se provou adequada. Como resultado, seu mundo ficará mais rico e você vai se envolver ainda mais no jogo se permitindo ser surpreendido junto com os jogadores
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