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Como interpretar e incentivar outros jogadores a interpretarem seus personagens? - Dose de XP #08

Updated: Mar 26, 2023

Mais do que um artifício cênico para gerar diversão, a atuação leva o jogador a enxergar o mundo pelos olhos de seu avatar e o coloca dentro do jogo





Um dos três pilares do RPG (junto com narrativa coletiva e progressão por experiência) é a interpretação de papéis. É o “RP” no nome do jogo. Mais do que um artifício cênico para gerar diversão, a atuação leva o jogador a enxergar o mundo pelos olhos de seu avatar e o coloca dentro do jogo, enriquecendo o cenário e dando vida ao mundo. Nesse texto, vamos dar dicas para melhorar a imersão dos membros da mesa em seus papéis e para criar condições que incentivem a representação.


Como seria o RPG sem interpretação


O RPG nasceu dos wargames, jogos em que historiadores nerds controlavam exércitos em uma espécie de xadrez mais complicado para simular batalhas célebres. Existem diversos sistemas, mas o mais popular foi aquele criado por Tony Bath, em que cada miniatura representando vinte soldados percorriam mapas que se pareciam com maquetes escolares feitas para a feira de ciências da quarta série. O foco era a tática, os diversos terrenos e unidades, a alocação de tropas e recursos, a fidelidade histórica. Se a coisa parece impessoal e sem alma, é porque era mesmo.


O jogo só começou a tomar o aspecto que conhecemos hoje quando os game designers Gary Gygax e Dave Arneson ampliaram o zoom, colocando cada participante para interpretar um único personagem, representado por uma única miniatura. Gygax tinha um background desenvolvendo wargames de fantasia (Chainmail), e eu imagino que, inicialmente, essa influência tenha limitado o aspecto da interpretação nas primeiras mesas de Dungeons and Dragons.


Entretanto, quando cada jogador se torna responsável pelas ações de um personagem, a fronteira que divide o cênico do real começa a desaparecer. Mesmo que as primeiras aventuras tenham se limitado às simulações de batalha que já eram familiares aos wargames, a identificação de cada jogador com seu alter ego deve ter sido sentida. Além disso, quando um jogador é responsável por apenas um indivíduo, sua intencionalidade automaticamente transforma o objetivo do jogo. A meta de um exército é vencer a batalha, mas e a meta de uma pessoa?


Estou fazendo essa recapitulação histórica para argumentar que RPG sem interpretação é impossível. O que existem são mesas que relegam essa dimensão a um segundo plano. Existem sistemas e mestres que desestimulam a atuação por falta de recompensa. Mas no instante em que um jogador toma a decisão de entrar na floresta ao invés de entrar na caverna, ele está interpretando – está enxergando o mundo através dos olhos de seu personagem e tomando decisões com base em valores de seu avatar.


A interpretação pertence ao sistema?


Mesas pobres em interpretação são aquelas em que os participantes conduzem o jogo por critérios mais objetivos e menos dramáticos. São sessões em que se fala muito sobre tática em batalhas, sobre sistema, sobre a matemática da ficha de cada personagem vencendo a matemática da ficha dos monstros. Todos esses fatores são muito presentes no D&D, sistema que inaugurou a interpretação mas que está afastado da interpretação em relação a outros sistemas como o Storyteller, da série Vampiros: a Máscara.


Isso não é um paradoxo, é uma consequência lógica da proximidade histórica do D&D com os wargames cujo foco era a estratégia técnica. A desenvolvedora responsável por Dungeons and Dragons, Wizards of the Coast, fez uma guinada em 2014 com a edição 5e, que simplificou regras e colocou o foco na narrativa. Algumas invenções, como o sistema de traços de personalidade (ideals, bonds, flaws), facilitaram muito a interpretação e têm gerado bons resultados.


Isso indica que parte do problema é o custo para a interpretação: jogadores evitam gastar tempo e energia atuando se isso não tem recompensas. A edição 5e reduziu o custo ao obrigar jogadores a indicar objetivamente como vão se comportar, registrando o caminho para a interpretação na ficha do personagem. Mas, na minha opinião, a edição não fez o que poderia em termos de motivação.


O problema pode ser ainda mais difícil de solucionar. Por favorecer as narrativas épicas, personagens de D&D são frequentemente planos e exagerados: suas ambições são escrachadas e repetitivamente reafirmadas. “Minha família foi morta por dragões agora preciso resgatar o tesouro na torre do mago para conquistar a donzela, etc etc”. A coisa tende para um novelão.


Comparativamente, o sistema Storyteller produz cenários realistas ao regularizar menos o comportamento via regras (grande parte da decisão de problemas é deixada a cargo da discricionariedade do mestre). Assim, o produto assume abertamente o risco de ser injusto (para a definição de injustiça, veja o Dose de XP #6). Quando não se pode confiar em regras do sistema para resolver conflitos, o foco recai na interpretação, na solução por meio de acordos.


Nos cenários clássicos do “Mundo das Trevas” (sistema Storyteller), não há batalhas intermináveis com tabelas a serem consultadas. Se os jogadores encontram um chefão milenar, todos interpretam que ele é praticamente imbatível. Na verdade, o sistema Storyteller é tão propício para a interpretação de papéis que incentivou adolescentes da década de 1990 a tomarem vinho barato enquanto jogavam fantasiados o ridículo LARP (Live Action RPG). Outro argumento deste texto é que interpretação é bom, mas interpretação demais é embaraçoso.


Dicas práticas


Ok, todos concordamos que as mesas em que jogadores interpretam seus papéis são mais vivas, dinâmicas, divertidas e muito mais engraçadas. Você já é chato o suficiente na vida real. Mas o que se pode fazer para encorajar a interpretação?


1) Reduza o custo da interpretação


O custo pode ser social. Em uma mesa onde ninguém interpreta, tentar atuar será vergonhoso. Se você quer que as pessoas se sintam mais à vontade, tome a iniciativa e faça vozes, diga coisas que você imagina que o personagem diria. Os outros vão te seguir.


2) Seja concreto ao invés de abstrato


Tentar imaginar toda uma personalidade completa é vago e complexo. Uma mesma pessoa pode ser às vezes medrosa e em outras ocasiões corajosa. Para entender um personagem, você deve quebrar a individualidade confusa e intrincada em tarefas menores e concretas. Delimite protocolos específicos de comportamento: meu personagem se afogou quando criança – sempre que ele cair na água, ficará em pânico. Ele é apegado ao seu tutor – fará de tudo para protegê-lo. Ele quer se casar – sempre que conseguir dinheiro, guardará para sua futura família.


3) Recompense os atores


Antes da edição de D&D 5e abolir as tendências (alignment chart com bom, neutro e mau; leal, neutro e caótico), as mesas do Metajogo usavam um sistema de recompensa em XP para quem se comportasse de acordo com sua tendência. Em pouco tempo, começamos a pensar em novas tendências e produzir um alignment chart que cresceu exponencialmente – e eu acho que isso prova que recompensar pela interpretação estimula mais interpretação.


As tendências clássicas não existem mais na edição 5e, mas o mestre ainda pode pensar em maneiras de recompensar aqueles que tomam seu tempo para enriquecer a mesa. Itens, eventos fortuitos, simpatia dos NPCs – todos esses são elementos que vão justificar a atuação e incentivar a interpretação nos jogadores

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