top of page
Search

RPG precisa ser justo? E balanceado? - Dose de XP #06

Updated: Mar 26, 2023

Para pensar a questão, primeiro vamos dar um passo atrás: q̶u̶a̶l̶ ̶a̶ ̶o̶r̶i̶g̶e̶m̶ ̶d̶a̶ ̶v̶i̶d̶a̶?̶ O que significam os termos “justiça” e “balanceamento”?




O conceito de Balanceamento tem a ver com a equiparidade de forças entre personagens de diferentes jogadores. Um RPG balanceado significa que classes e builds (conjuntos de itens, habilidades e magias) selecionadas por um jogador resultarão em um personagem nivelado em comparação com os demais de mesma experiência. Um RPG desbalanceado é aquele em que um caminho possível para o personagem resulta em uma progressão claramente superior. O conceito de Justiça tem a ver com a capacidade de “vencer” o jogo. Um jogo justo é aquele em que jogadores conseguem chegar ao final usando sua própria capacidade e as ferramentas que o sistema lhes deu. Um jogo injusto é aquele que pune jogadores sem que eles tenham cometido nenhum erro, que mata personagens por deslizes que nunca ficam claros. (Por essa lógica, um jogo em que personagens nunca morrem também seria injusto, mas na prática ninguém se sente afrontado pelos capangas que morreram fácil demais.) O problema do balanceamento O problema óbvio já aparece na definição. Se um guerreiro de nível 6 deve ser equivalente a um mago de nível 6, como medir essa equivalência? Em combate, um guerreiro pode derrubar mais inimigos do que um mago, mas um mago pode pode se teletransportar, iludir e modificar o terreno – o que vale mais? Felizmente, a resposta também é intuitiva. O RPG é um jogo tão complexo porque sua premissa é a interpretação de papéis em um mundo livre: você dá ferramentas ao jogador e oferece desafios a serem superados. As possibilidades são tantas – existem tantas pessoas inventivas que fazem muito com economia de recursos e existem tantas pessoas incompetentes que falham em solucionar adversidades dispondo de diversos artifícios – que o balanceamento fica difícil de apontar. Em outras palavras, na prática do jogo, você nunca sabe dizer se o ladino é uma classe mais forte do que as outras ou se aquele jogador interpretando um ladino é um jogador melhor do que os outros, pois as duas coisas se confundem. Podemos dizer, então, que o problema do balanceamento geralmente é detectado na análise do sistema, e não no decorrer do jogo em si. Discrepâncias são percebidas mais por game designers analisando tabelas de progressão de personagens do que por jogadores. Historicamente, a solução encontrada foi dizer “não pense sobre isso, este é um jogo colaborativo, você não precisa superar seus colegas”. Nas primeiras edições de D&D, o avô de todos os sistemas, o ladino dizia: “vou procurar uma armadilha embaixo deste ladrilho no piso” e, se encontrasse, o mestre descrevia o mecanismo e o ladino podia dizer: “vou desenroscar este fio que prende esta mola ao virote envenenado”. Perceba que não há o que ser balanceado. Em momento algum o sistema precisou interferir em favor do ladino. (Para saber mais sobre como o RPG era jogado, procure por “OSR”.) Hoje, o ladino pode jogar um teste de percepção e de desarmar armadilhas e tudo fica resolvido matematicamente, dentro do sistema. O ladino tem proficiências e vantagens nesse rolar de D20 – como esses bônus se comparam às vantagens de outras classes? Essa é uma das raízes do problema, que surgiu como solução de personalização para especializar o ladino, em detrimento de outras classes e também da interpretação do jogador. Outros possíveis motivos para o surgimento da preocupação com balanceamento são o PVP, a influência de jogos eletrônicos competitivos e a mentalidade de que todo mundo pode ser um vencedor. Ninguém vence, a vida é dura. Afinal, precisa ser balanceado? A obsessão com um sistema que force um equilíbrio entre personagens é prejudicial porque tira o foco da interpretação de papéis e coloca a atenção nas tabelas de progressão de personagens e em regras com que apenas meia dúzia de chatos se importam. Apesar disso, ninguém defende o desbalanceamento. O conceito de balanceamento é artificial (não existe equilíbrio possível pois não há apenas uma régua pela qual as coisas podem ser medidas), mas a definição de desbalanceamento é bem concreta. Caso exista uma classe claramente superior às demais, o jogo está morto. Os jogadores vão constantemente se perguntar “por que não escolhi a melhor classe?” e o propósito de interpretar um alter ego se perde. O desbalanceamento é um problema inevitável em sistemas recém lançados e pode ser detectado casualmente quando um grande número de jogadores testa todas as combinações possíveis de composição de personagens. A solução moderna da maior parte dos sistemas é fornecer um paralelismo na evolução das classes que dá uma ideia vaga de isonomia: se o guerreiro ganha algo importante no nível 2, o mago também deve ganhar algo importante no nível 2. E se você me perguntar se esses “algo importante” devem ser realmente equivalentes, minha resposta será: “não pense sobre isso, este é um jogo colaborativo, você não precisa superar seus colegas.” O problema da justiça Enquanto o balanceamento diz respeito à paridade de forças entre jogadores, a justiça tem relação com a paridade de forças entre jogadores e seus oponentes, a máquina, o sistema. A ideia de que um jogo de RPG precisa ser justo me parece estranha. Primeiro, porque o mestre tem poder discricionário de matar qualquer um sem justificativa alguma. Está nas regras. Se um raio cair na sua cabeça, você morreu. Em segundo lugar, todos os cenários de RPG precisam guardar uma coerência interna. Isso é: se os personagens são habitantes de um mundo verossímil, o mestre provavelmente vai acabar matando alguns caso entrem em conflito com um dragão vermelho (mesmo que dragões não sejam verossímeis, a lógica do universo permite sua existência contanto que algumas regras sejam seguidas; no caso, a regra diz que o dragão deve ser poderoso). Em um mundo hostil, violento por definição, a justiça é impossível. Historicamente, essa foi a forma como o RPG sempre foi encarado. Ninguém te prometeu uma chance de “vencer” esse jogo (o conceito de vencer nem sequer existe). Você não merece uma oportunidade de derrotar seus inimigos, você precisa encontrar um jeito de fazê-lo apesar da injustiça inerente a esse mundo cruel. O primeiro problema surge daí. Atualmente, o sistema mais popular de RPG é o D&D, edição 5e, que privilegia a narrativa. Os personagens, que se parecem com protagonistas de um filme, geralmente estão seguros de que não morrerão pois a evolução da história depende deles. O foco está no drama de suas crônicas. É um jogo bem diferente do D&D original, quando a exploração de calabouços dispensava qualquer individualidade e personagens substituíveis eram frequentemente mortos (novamente, google “OSR”). Nessa perspectiva, o jogo está cada vez mais injusto – pendendo para o lado dos jogadores. Eu tenho a impressão de que o foco do RPG está migrando da história coletiva formada pela interpretação de papéis para uma história individual, que o mestre tem para contar. De certa forma, é natural que isso tenha acontecido, pois as aventuras publicadas são caras e bonitas e você não quer desanimar seus jogadores no segundo capítulo com armadilhas arbitrárias. Mas eu ainda acredito que uma dimensão da história se perdeu por causa da noção um tanto mimada de merecimento. Para comparação, pense em outros jogos. Super Mario é justo? Bom, sim. Existe uma forma de ganhar. Mas você provavelmente vai morrer algumas vezes tentando. Há alguns anos, após terem estado fáceis demais, os videogames passam por uma revalorização da dificuldade (série Souls). O jogo de tabuleiro War, é justo? Bom, sim, pois antes de o jogo começar as chances de todos os participantes são as mesmas. Mas um jogador pode dar azar no sorteio de territórios iniciais e ficar com o objetivo de dominar o outro lado do mundo – pronto, pode se divertir com as próximas oito horas de briga familiar. Afinal, precisa ser justo? A esta altura, minha opinião já deve estar clara: a ideia de justiça é ridícula. Você não joga RPG para “ganhar”, você joga para superar obstáculos apesar da injustiça de sua condição. Eu gosto da ideia de desafio, de mortalidade, de verossimilhança – se você morrer, a vida continua, faça outro personagem. No RPG, a injustiça é um componente essencial da simulação de cenários. Porém… Da mesma forma que acontece com o balanceamento, injustiça demais é um problema que ninguém defende. Um mundo injusto desmotiva os jogadores pois lhes dá a sensação de que suas ações não importam. Nem toda morte precisa ser significativa, mas quando cada esquina esconde uma morte, as mortes deixam de ser sentidas.

コメント


Post: Blog2_Post
bottom of page